“Mocinho e bandido
Eles não duelam entre si e muito menos vão sacar um revólver do coldre, mas o mensalão está produzindo um mocinho e um bandido e despertando todas as emoções que ambos merecem.
O mocinho é José Genoino, que foi preso e torturado na ditadura e, desde o início do julgamento no Supremo, divide mentes e corações.
Os ministros do tribunal e nove entre dez colunistas sempre foram (fomos) mais cuidadosos com ele do que com os demais. Parte pela questão objetiva de que Genoino entrou no bangue-bangue por assinar um documento na condição de presidente do PT. E parte pela questão subjetiva de que, apesar de envolvido num esquema milionário, ele nunca quis ser -e não é- um homem rico”.
Deixando o debate sobre o condenado de lado, a coluna levanta um ponto importante sobre o crime de corrupção. Na corrupção passiva, o servidor público que pede ou aceita a propina não precisa ter uma finalidade específica para a propina recebida para que o crime esteja configurado. Na verdade, não precisa ter nem mesmo um propósito genérico. Basta que ele peça, aceite ou receba uma vantagem ou uma promessa de vantagem indevida.
E quem recebe a propina não precisa ficar com o valor para si para que a sua corrupção esteja configurada.
Um servidor público – vamos chamá-lo de Dr. Hobin Hood – que peça propina dos empresários bilionários com a intenção de mais tarde distribuí-la pelas milhares de favelas brasileiras para ajudar na educação de seus habitantes estará cometendo o mesmo crime que o servidor público que a usará para construir um castelo em sua fazenda.
O que se tenta proteger é lisura e respeitabilidade da administração pública. A lei olha para a vítima (Estado/sociedade) e não para as intenções egoístas ou altruístas do servidor-criminoso.
Mesmo porque, se a lei passasse a olhar a intenção que o corrupto quer dar ao dinheiro para decidir se há ou não corrupção teríamos dois problemas: o que fazer com corruptores presos que alegassem que ainda não tiveram tempo de doar o dinheiro para a caridade? Afinal, criminoso não envia carta para instituição de caridade dizendo 'vou roubar tal banco amanhã para doar o dinheiro para vocês'. E o que seria ‘nobre’? Um corruptor que pretendesse usar o dinheiro para financiar uma campanha contra ou a favor da pena de morte, legalização das drogas ou o que seja, estaria usando o dinheiro para um propósito nobre?
É por isso que as duas únicas exigências da lei para que a corrupção passiva se configure é que a vantagem (ou promessa de vantagem) seja indevida, e que ela seja solicitada, aceita ou recebida em razão de sua posição como servidor público. O uso a ser dado à propina é irrelevante.
Vale lembrar que governo não é Estado. O servidor que recebe propina com a intenção de repassá-la aos membros do governo ao qual pertence está praticando corrupção.
E mais: não importa que o criminoso seja rico ou pobre ou não se torne rico com o produto do crime. As consequências na vida do criminoso são irrelevantes para a configuração do crime, da mesma forma que o criminoso não deixa de ser um homicida se ao matar a vítima também se feriu.
Mas isso quer dizer que o servidor Hobin Hood e o egoísta recebem a mesma pena?
Não. Embora tenham praticado o mesmo crime e sejam apenados com base no mesmo artigo, se o magistrado estiver convencido que os propósitos do servidor eram de relevante valor social ou moral, ele pode aplicar uma pena menor porque houve uma circunstância atenuante. E se estiver que o motivo da corrupção é fútil ou torpe, deve aumentar a pena porque isso é uma circunstância agravante.
O problema é se receber dinheiro para o partido ou outra pessoa deve ser considerado relevante valor moral ou social, ou motivo fútil ou torpe, porque isso é subjetivo.
Da mesma forma, o passado do criminoso não importa para a configuração do crime. Um herói de guerra e um criminoso habitual cometem o mesmo crime ao agirem da mesma maneira. É na aplicação da quantidade de pena que o magistrado vai levar em conta os antecedentes do criminoso ou qualquer fator histórico que possa tornar sua conduta mais ou menos reprovável. Mas o crime continuará o mesmo.
Se a Justiça passasse a olhar o histórico do réu para decidir se houve ou não um crime no presente, poderíamos ter a inusitada situação em que pessoas com ótimo histórico passariam a ter 'crédito' para cometerem crimes. O médico que tivesse salvo três vidas agora poderia cometer três homicídios sem medo de ser condenado.
A ideia do direito é que estejamos o tempo todo dentro da lei, e não que estejamos em média dentro da lei.